sábado, 31 de janeiro de 2009

A CRIAÇÃO DA CLT - ENTREVISTA COM ARNALDO SUSSEKIND

Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 113-127.
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ENTREVISTA COM ARNALDO SUSSEKIND
Arnaldo Sussekind foi ministro do Trabalho e Previdência Social no governo Castelo
Branco e ministro do Tribunal Superior do Trabalho. No início de sua carreira, com apenas
24 anos, participou da comissão responsável pela elaboração da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), o mais importante instrumento legal no campo trabalhista brasileiro, que
em 1o de maio de 1993 completou 50 anos.
Foi para marcar esta data que as pesquisadoras Angela de Castro Gomes e Maria
Celina D'Araújo entrevistaram este importante jurista, autor de várias obras na área do
direito do trabalho. Aqui, Arnaldo Sussekind rememora a criação da CLT, indica seus pontos
fortes e fracos e fala das perspectivas e dos problemas ligados aos direitos trabalhistas no
Brasil.
— A que se deveu sua participação na comissão que preparou a Consolidação das
Leis do Trabalho, 50 anos atrás?
O ministro Alexandre Marcondes Filho foi nomeado para a pasta do Trabalho,
Indústria e Comércio no dia 2 de janeiro de 1942 e me chamou para ser um dos seus
assistentes. Não que eu fosse conhecido. Ninguém sabia quem era Arnaldo Sussekind. Eu
havia entrado para o Ministério do Trabalho como estudante de direito na função de auxiliar
de escrita, depois passei a assistente técnico, depois a assistente jurídico e finalmente, com a
criação da Justiça do Trabalho, fui nomeado chefe da Procuradoria Regional do Trabalho em
São Paulo. O ministro quis prestigiar a Procuradoria de São Paulo e me trouxe como seu
assistente.
Desde logo o ministro Marcondes manifestou a idéia de consolidar a legislação do
Trabalho e da Previdência Social, porque naquela ocasião havia uma multiplicidade de leis de
distintas fases pós-Revolução de 1930, algumas até antagônicas, além de omissões
importantes, e era preciso ordenar a coisa sistematicamente. Preparou-se então uma portaria
designando uma comissão de dez membros, sob a presidência dele, Marcondes Filho, para
fazer a Consolidação das Leis do Trabalho e da Previdência Social. Essa portaria foi
publicada no dia 29 de janeiro de 1942, com a concordância do presidente da República,
Getúlio Vargas, que havia autorizado a consolidação. Mas na primeira reunião, os membros
da comissão mostraram ao ministro que tinham que ser feitas duas consolidações, uma do
Trabalho, outra da Previdência. Os grupos foram separados, e a comissão encarregada de
fazer a CLT foi constituída pelos procuradores da Justiça do Trabalho Luís Augusto de Rego
Monteiro, então diretor geral do Departamento Nacional do Trabalho, Dorval Lacerda, José
de Segadas Viana, que mais tarde foi ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, e eu, além do
consultor jurídico do Ministério Oscar Saraiva. Isso explica por que, com 24 anos, integrei
esse grupo: eu era assistente do ministro, e ele queria ter uma pessoa de trato cotidiano na
comissão, para lhe dizer o que estava sendo feito, combinar as coisas com ele etc. Depois,
Rego Monteiro e eu fomos diversas vezes ao presidente Getúlio Vargas, junto com o ministro
Marcondes, para explicar as inovações. Marcondes fazia questão de que Getúlio autorizasse
as inovações que fossem feitas.
— O senhor era realmente muito jovem. Devia ser o caçula do grupo.
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Sim. Daí por que sou o único sobrevivente. O último que faleceu, com 87 anos, foi
Segadas Viana, em outubro de 91.
— E o senhor também devia ter uma posição estratégica na comissão, já que tinha um
contato privilegiado com o ministro.
Realmente, eu e Rego Monteiro tínhamos mais contato. Afinal, Rego Monteiro era
diretor geral do Departamento Nacional do Trabalho, além de coordenador da comissão. Eu,
como assistente do ministro, tinha despacho diário com ele. O ministro Marcondes Filho tinha
uma coisa muito interessante. Para forçar o horário dos assistentes, que não tinham ponto, ele
fazia questão de tomar o café da manhã com todos, às oito e meia, no gabinete dele.
A comissão preparou um anteprojeto de consolidação, que foi publicado no Diário
Oficial do dia 5 de janeiro de 1943 para receber sugestões. Em seguida, com a autorização do
presidente Getúlio Vargas, foi constituída nova comissão para examinar as sugestões e redigir
o projeto final. Dessa comissão não fez mais parte o consultor jurídico Oscar Saraiva, que foi
um elemento de enorme valia na primeira fase. O ministro Marcondes Filho quis que ele fosse
reforçar a comissão da Previdência Social, que estava atrasada, e ele nos deixou. Aliás, a
consolidação da Previdência nunca saiu. E então nós quatro - Rego Monteiro, agora como
presidente da comissão, Dorval Lacerda, Segadas Viana e eu fizemos o projeto final, que foi
aprovado no dia 1º de maio de 1943, há 50 anos. Mas o Decreto-Lei 5.452 só foi publicado no
dia 9 de agosto de 1943, para entrar em vigor três meses depois, isto é, a 10 de novembro.
— Isto foi feito intencionalmente, para coincidir com a data da instauração do Estado
Novo?
Na publicação do decreto-lei houve um atraso, mas depois do atraso houve a
coincidência proposital. O decreto podia ter sido publicado, por exemplo, no dia 9 de maio,
para entrarem vigor seis meses depois. Coincidiria da mesma forma. Agora, por que o atraso?
E que os jornais noticiaram mais ou menos as linhas principais da CLT, e houve reação de
algumas entidades de São Paulo, do Rio Grande do Sul e, sobretudo, do ministro da Viação e
Obras Públicas, que tinha responsabilidade sobre a parte de transporte, ferrovia, portos
marítimos. Houve uma certa pressão junto ao presidente Getúlio Vargas para ele mudar
algumas coisas. Ele mandava o que recebia para o ministro Marcondes, que passava à
comissão. Nós então justificávamos por que tínhamos feito daquela maneira e a questão era
submetida ao presidente. Nenhuma alteração foi feita, isso é que é importante registrar.
— Que pontos da CLT provocaram mais reações?
Vários pontos. Aparte de duração do trabalho, por exemplo. A lei de oito horas já
existia, mas nós regulamentamos o trabalho extraordinário, o trabalho noturno etc. Houve
problemas também na parte de higiene e segurança do trabalho. Os empresários achavam que
aquilo não podia entrar em vigor logo, que o Brasil não tinha condições materiais para
neutralizar os agentes físicos, químicos e biológicos que agridem o trabalhador. Mas o
importante, repito, é que nada foi modificado.
— Quais foram exatamente os pontos inovadores da CLT?
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Para responder a essa pergunta temos de ver as fontes da CLT, que ensejaram
procedimentos diferentes. Primeiro, nós tínhamos as leis de 1930 a 1934, de proteção
individual ao trabalhador: duração do trabalho, férias, trabalho de mulheres, trabalho de
menores etc. Essas leis correspondem a decretos legislativos que se inspiraram,
preponderantemente, em convenções da Organização Internacional do Trabalho. Através
deles Getúlio legislou abundantemente, com a colaboração eficiente dos dois primeiros
ministros do Trabalho, Lindolfo Collor e Salgado Filho. Há posições por aí muito radicais
sobre a legislação pretérita: uns dizem que não existia nada, outros dizem que já existia muita
coisa. Não. Existia pouca coisa. Afonso Pena, por exemplo, em 1907 fez uma lei sindical
muito boa, só que não pegou, porque sob o prisma sócio-econômico não havia condições para
a sindicalização. Éramos um Brasil enorme, de território continental, com núcleos isolados de
operários. E sabido que a sindicalização depende muito do espírito sindical, que por sua vez
depende da concentração operária, que depende da indústria. Não havia indústria em 1907.
Então, realmente, surgiram sindicatos, mas muito poucos, não uma organização sindical. Nós
tivemos a Lei Elói Chaves, de 1923, criando as caixas de aposentadorias e pensões dos
ferroviários, que foram o início da Previdência Social no país. Essa é uma lei importante, não
pela extensão, que alcançava só os ferroviários, mas por ser o primeiro passo de um sistema.
Em 1927, a Lei 5.109 criou as caixas dos marítimos e portuários, estendendo um pouco a
Previdência. Essas duas leis deram estabilidade de dez anos ao pessoal segurado das caixas. E
tivemos só mais uma lei, acho que de 1927, do Artur Bernardes, sobre férias, mas era uma lei
que também não foi aplicada, porque não havia nem Ministério do Trabalho para fiscalizar,
nem tribunal para reclamar. De maneira que concediam férias os que queriam.
Quem mais legislou foi realmente Getúlio. Não foi uma legislação conquistada de
baixo para cima. Ela veio de cima para baixo, foi o que se chamou de outorga da legislação. E
isso foi feito com uma dupla intenção. A primeira era mesmo evitar que lutas sangrentas
viessem a ser travadas para conquistar leis. Nós tínhamos o exemplo de algumas greves
importantes de anarquistas, sobretudo em São Paulo, mas também no Rio, Bahia,
Pernambuco, Rio Grande do Sul, decorrentes de uniões fabris criadas por influência de
imigrantes italianos e espanhóis. Getúlio temia os movimentos violentos, como os que
ocorreram na Europa e em alguns países como o México e a Argentina. A segunda
preocupação dele era criar um clima favorável à industrialização do país. Esses foram dois
pontos que ele sempre pretendeu atingir.
Depois dos decretos legislativos de 1930 a 1934, tivemos as leis de 1934 a 1937, que
correspondem ao período constitucional do país, quando o ministro do Trabalho era o
pernambucano Agamenon Magalhães. Duas das leis desse período foram muito importantes: a
Lei no 62, de 1935, que instituiu a indenização por despedida injusta e estendeu a
estabilidade, que até então era só para os marítimos e para os bancários, à indústria e ao
comércio; e a lei que instituiu as comissões para estabelecer o salário mínimo, o que só seria
feito realmente mais tarde, em 1940.
Com a Constituição de 1937, tivemos a fase dos decretos-leis. De 1937 a 1941
tivemos o período do ministro Waldemar Falcão, que contou com a colaboração de duas
pessoas historicamente muito importantes: Oliveira Viana, jurista e sociólogo, e Rego
Monteiro, também jurista, que depois iria fazer parte da comissão da CLT Eram ambos
corporativistas e estavam de acordo com a diretriz doutrinária da Constituição de 37, que
chegou a criar - embora não tenha sido instalado - o Conselho de Economia Nacional, órgão
com força de Senado que seria composto por representações corporativas. Para preparar a
organização sindical - isso é que é muito importante para se compreender a estrutura sindical
adotada pela CLT - configurando-a como um sistema corporativo e hierarquizado, foram
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expedidos vários decretos-leis. Quais eram os princípios que orientavam a configuração da
organização sindical como um sistema corporativo? Primeiro, a unidade sindical compulsória,
por categoria ou profissão. Isto quer dizer que em cada categoria ou profissão, numa
determinada base territorial, só podia existir um sindicato. Segundo, este sindicato único
passava a representar não apenas seus associados, mas todos os que integravam as categorias
ou profissões. Terceiro, porque todo trabalhador e todo empresário eram legalmente
representados por um sindicato, deviam contribuir para ele com o Imposto Sindical. Esta parte
é que foi inspirada no corporativismo italiano, que estava refletido na Carta del Lavore. Muita
gente critica o corporativismo, mas não sabe que ele não era uma idéia italiana, era idéia de
um romeno chamado Manoilesco.
— Autor de um livro chamado O século do corporativismo.
Exatamente. Mas a verdade é que o fascismo maculou o corporativismo para sempre.
Em 1942, quando entrou o ministro Marcondes Filho e nós tivemos que fazer a CLT, era
evidente que tínhamos de transplantar a legislação da véspera, referente à Organização
Sindical Corporativa - é o título V da CLT A Constituição era a mesma, a legislação da
véspera era do mesmo presidente da República. Portanto, não se pode culpar nenhum dos
membros da comissão de ter-se inspirado na Carta del Lavoro. Nós simplesmente pegamos o
que estava feito na parte sindical e passamos para o texto da CLT E adaptamos a esse texto o
título seguinte, sobre o Contrato Coletivo de Trabalho, que era um decreto legislativo do
Salgado Filho, mas realmente baseado em um projeto do Lindolfo Collor. Essa lei foi
adaptada para o sistema da organização sindical corporativa que estava sendo consolidada.
Nessa parte a comissão praticamente não fez nada. Os títulos V e VI foram simples adaptação
e transposição.
Outros títulos que foram transplantados para a CLT, quer dizer, em que não houve
nenhum mérito por parte dos membros da comissão, foram os referentes à Justiça do
Trabalho. A Justiça do Trabalho foi criada em 1939, regulamentada em dezembro de 40 e
instalada em maio de 41. Destarte, em janeiro de 42 nós pegamos o que havia e colocamos na
CLT Também quanto à Justiça do Trabalho há uma crítica injusta de pessoas que ignoram a
história do direito do trabalho no mundo e no Brasil. Há muita gente que diz que a Justiça do
Trabalho é corporativa, primeiro porque ela é paritária, quer dizer, ela é tripartite, tem
representantes de empregados e empregadores sob a presidência ou sob a maioria de
magistrados de carreira. Ora, isso não significa corporativismo algum. Basta dizer que a
Organização Internacional do Trabalho, que nasceu com o Tratado de Versalhes de 1919, é
tripartite e defende o tripartismo em todas as suas manifestações. Acha que representantes
autênticos e legítimos, de empregados e empregadores, devem participar da discussão e da
aplicação da legislação do trabalho. Nesse ponto, portanto, a crítica é absolutamente
improcedente. O segundo ponto de crítica é o fato de que os Tribunais do Trabalho têm poder
normativo para julgamento dos dissídios coletivos. Isto é, o Tribunal do Trabalho não se
limita a declarar um direito préexistente, que teria sido ou não violado, como fazem os outros
tribunais, mas constitui direito novo através do seu poder normativo, que é uma espécie de
arbitragem compulsória do conflito coletivo do trabalho. Por que criticam, por que chamam
de corporativismo esse poder normativo? Porque a Magistratura del Lavoro, isto é, a Justiça
do Trabalho da Itália, o adotou. Acontece que o poder normativo nasceu muito antes, numa
época em que nem se falava em Mussolini. Nasceu na Nova Zelândia, no início do século,
depois passou para a Austrália e está no México desde 1919. No México o poder normativo é
muito mais amplo, inclusive, do que no Brasil.
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A OIT relacionou recentemente, numa publicação intitulada Conciliación y arbitraje
en los conflitos colectivos de trabajo, Genebra, segunda edição de 1987, página 175 a 180,
uma série de países de todos os continentes onde funcionam organismos permanentes,
administrativos ou judiciários, que têm o poder de arbitrar compulsoriamente os conflitos
coletivos. Os países onde a arbitragem é feita por órgãos administrativos são Austrália,
Bolívia, Camerum, Colômbia, Costa do Marfim, Costa Rica, Egito, Equador, Gana, Grécia,
Indonésia, Líbano, Líbia, Madagascar, Malásia, Nova Zelândia, Serra Leoa, Tunísia, Turquia,
Uganda, Venezuela e Zâmbia. A arbitragem é feita por órgãos judiciais no Brasil, Guatemala,
Índia, Jamaica, Quênia, México, Nigéria, Paquistão, Cingapura, Sri Lanha, Tanzânia e
Trinidad Tobago.
A OIT prefere que a arbitragem seja facultativa. Ela defende a linha de que as próprias
partes, quando entenderem pertinente, devem eleger árbitros para dirimir a controvérsia, com
o compromisso de acatar o laudo arbitral. Mas em muitos países, como os que citei, prevalece
a idéia de que um conflito coletivo é tão importante, tem tanta ressonância para a comunidade
local e a própria nação, que não pode ficar em aberto, sem solução. Então eles impõem a
arbitragem compulsória. Estou me referindo a isso, quase que num parêntese, para mostrar
que a crítica à Justiça do Trabalho como uma manifestação corporativa não tem em absoluto
procedência. O fato de a Itália ter adotado o poder normativo não o enodoou. É o caso de
perguntar: a lei de oito horas é fascista? As férias anuais remuneradas são corporativistas?
Não, embora a Itália não tenha deixado de adotá-las também. Hoje, os que querem atacar a
legislação de Getúlio e a Justiça do Trabalho, acusam-na de corporativista por causa da
arbitragem compulsória. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Acho, inclusive, que
no Brasil os sindicatos de trabalhadores e empregadores preferem mais do que deviam a via
judicial para a solução dos conflitos coletivos do trabalho. Há muita facilidade para a
instalação do dissídio coletivo. Devia haver mais restrições, porque na razão inversa das
restrições se ampliariam as negociações coletivas diretas.
— O senhor pessoalmente não aprova que se recorra à via judicial para a solução
dos conflitos?
Eu penso que o ideal é a negociação coletiva direta entre empregados e empregadores.
Daí podem resultar dois instrumentos: a convenção coletiva, de sindicato com sindicato, para
abranger toda a categoria, ou o acordo coletivo, do sindicato dos trabalhadores diretamente
com a empresa. Quando não há sucesso na negociação coletiva, normalmente se deveria
passar para a fase da mediação, isto é, o Ministério do Trabalho deveria chamar as partes e
tentar mediar. Isso foi feito durante muito tempo. Ultimamente não vem sendo feito mais,
porque o Ministério está defendendo a linha, a meu ver errada, de que tentar mediar um
acordo é uma intervenção. É evidente que isso não é intervenção! A terceira fase, finalmente,
é a da solução. A solução pode vir ou da arbitragem facultativa, como se faz em alguns países,
ou da arbitragem compulsória. Esta, por sua vez, pode ser feita ou por organismos
administrativos, como na maioria dos países que a adotam, ou por Tribunais do Trabalho.
Quando é feita por Tribunal do Trabalho, diz-se que o tribunal tem poder normativo, quer
dizer, tem poder de emitir normas, de constituir novas normas ou rever normas antigas.
— Bonita lição. Será que a adoção do poder normativo no Brasil não se deveu ao fato
de se estar iniciando, com a Justiça do Trabalho, uma coisa extremamente diferente e
inovadora, e de se ter necessidade de soluções rápidas?
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Vocês estão certas. E ainda há mais. A Constituição de 37 proibiu o direito de greve.
Tinha-se portanto de prever um procedimento para solucionar o dissídio. Senão os
trabalhadores, desde que os empregadores não chegassem a um acordo na negociação
coletiva, ficariam sem caminho. Depois a Constituição de 46 adotou o direito de greve, mas
foi mantida a arbitragem compulsória institucionalizada na Justiça do Trabalho. Continua até
hoje, precisamente porque o dissídio coletivo se tornou uma tradição e um hábito dos
sindicatos brasileiros. Foi mantida porque os próprios sindicatos brasileiros desejavam assim.
Segundo revelou a OIT em estudo recente, a arbitragem obrigatória, atribuída a órgãos
administrativos ou institucionalizada em Tribunais do Trabalho, é comum nos países do
chamado Terceiro Mundo.
— Por que do Terceiro Mundo?
É simples. No Primeiro Mundo, que é mais industrializado, ou que é completamente
industrializado, a concentração industrial enseja o espírito sindical e os sindicatos fortes. E o
sindicato forte tem possibilidade de neutralizar o poder econômico das empresas. Na
discussão de uma convenção coletiva de trabalho, as partes estão equilibradas, em geral
conseguem chegar a um acordo, ou, quando não, designam um árbitro. Nos Estados Unidos
existem consultorias especializadas em arbitragem. Agora, nos países do Terceiro Mundo,
desigualmente desenvolvidos, em via de desenvolvimento ou subdesenvolvidos - eu coloco
sempre o Brasil como um país desigualmente desenvolvido -, há regiões onde os sindicatos
não têm expressão para conseguir bons acordos. Imaginemos que não houvesse uma lei dando
trinta dias de férias no Brasil. Que acordo o sindicato dos empregados do comércio de um
município do interior de um estado do Nordeste conseguiria? O equilíbrio das condições de
trabalho tem um efeito na macroeconomia muito maior do que se divulga. O poder normativo
torna-se então um fator de eqüidade social no conjunto das categorias, porque quando os
sindicatos poderosos conseguem alguma coisa, os menores, no dissídio coletivo, acabam
obtendo a mesma vantagem da Justiça do Trabalho. Exemplo histórico: a estabilidade da
gestante após a licença obrigatória. Começou com os sindicatos de metalúrgicos de São
Paulo, depois os de fiação e tecelagem, os dos bancários, passou para o Rio e, finalmente,
alguns sindicatos fortes de outros estados conseguiram uma estabilidade de três meses depois
do parto. Por greve ou outro meio de pressão, os sindicatos mais fracos não conseguiriam o
mesmo, mas começaram a pleitear, e a Justiça do Trabalho disse: "Bom, já que alguns têm,
vou dar para este também." E passou a dar a todo mundo. Generalizou tanto que a Assembléia
Nacional Constituinte consagrou a norma na Constituição de 88 e até ampliou a licença para
cinco meses. Esse é um exemplo histórico da importância do poder normativo.
— Voltando à CLT` de um lado, então, houve o aproveitamento de uma legislação
pré-existente. E quanto às inovações?
Vamos retomar a história, para completar. Era preciso fazer um ordenamento
sistemático das leis do trabalho, e a comissão da CLT teve de adotar três procedimentos
diferentes. Primeiro: aquilo que era legislação da véspera - a organização sindical, a Justiça
do Trabalho -foi transplantado. Segundo: em relação àqueles decretos legislativos, leis e
decretos-leis de três fases diferentes, que às vezes entravam num certo antagonismo, houve
necessidade de dar uniformidade. Nesse caso apenas fizemos uma consolidação,
uniformizando a linha doutrinária, cortando arestas etc. Mas havia um ponto importante: é
que não se podia supor um ordenamento sistematizado sobre um ramo do direito sem um
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título introdutório, que estabelecesse os princípios, os conceitos de empregado, empresa,
empregador etc. Aí nós tivemos de legislar realmente. O título 1, da Introdução, é
absolutamente novo, não existia nada antes. Outra coisa: existia uma lei, a Lei no 62, sobre
indenização em caso de rescisão do contrato de trabalho, mas não havia uma lei sobre
contrato de trabalho. Não se podia deixar, portanto, de fazer um título com as normas gerais
relativas a salário, alteração, suspensão e interrupção do contrato de trabalho etc. Com
exceção do que se aproveitou da Lei n° 62, o título IV, sobre o Contrato Individual de
Trabalho, é todo novo. E uma coisa que muito nos envaidece é que esses dois títulos, que são
realmente inovações da comissão, estão praticamente íntegros. Há uma modificação ou outra,
mas conservam as principais disposições e alinha doutrinária, sendo que nunca ninguém
acusou esses títulos de corporativos. Na verdade eles se inspiraram nas conclusões do I
Congresso Brasileiro de Direito Social, realizado na cidade de São Paulo, em maio de 1941.
Devo referir que quem muito colaborou nesses dois capítulos foi o procurador Dorval
Lacerda. Foi o primeiro de nós que faleceu, não chegou a ter um nome tão conhecido, mas
realmente era de uma juridicidade enorme, moldada rui cultura francesa.
— No seu entender quais foram as principais modificações que a CLT sofreu ao longo
dos seus 50 anos?
Por sorte ou coisa do destino, eu participei das duas principais modificações. A
primeira delas foi introduzida pelo Decreto-Lei 229, de 1967, que foi assinado pelo presidente
Castelo Branco e referendado pelo ministro Nascimento e Silva. Mas a iniciativa foi minha,
quando era o ministro do Trabalho. Antes de deixar a pasta, eu havia feito uma revisão da
CLT em alguns tópicos e tinha mandado um projeto para a Comissão Permanente de Direito
Social, que era uma espécie de estado-maior do Ministério do Trabalho. Essa comissão era
muito importante, porque se pronunciava sobre todos os projetos de lei de iniciativa do
Ministério ou sobre matéria de Trabalho e Previdência de iniciativa da Câmara, para orientar
o governo, e, além disso, preparava todas as teses e relatórios do Brasil para os organismos
internacionais. Toda a filosofia trabalhista e previdenciária do Ministério do Trabalho
praticamente resultava dela. Propositadamente nós não queríamos jeton, para que outros não
procurassem assento ali. Era uma comissão de procuradores do Ministério, de professores
catedráticos de fora, como por exemplo Rego Monteiro, procurador e professor da PUC,
Evaristo de Morais Filho, procurador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Nélio Reis, já falecido, na ocasião professor da UERJ, Geraldo Faria Batista, o único
sobrevivente da comissão que preparou a legislação sobre a Justiça do Trabalho, Moacyr
Veloso Cardoso de Oliveira, procurador do IAPI e professor da PUC, enfim, gente desse
gabarito. A importância dos pronunciamentos da comissão era tal que mudavam os ministros,
mas mantinha-se a mesma diretriz, quer dizer, mantinha-se uma certa uniformidade. Aquilo
que no regime parlamentarista, nos ministérios da Alemanha, da França, é tão importante,
infelizmente entre nós acabou. O presidente Médici, por sugestão do então ministro do
Trabalho, extinguiu essa comissão.
Mas eu dizia que havia mandado um anteprojeto para a comissão antes de deixar o
Ministério do Trabalho. A comissão reviu esse anteprojeto, entregou ao ministro Nascimento
Silva, que o levou ao presidente da República, e foi assinado o Decreto-Lei 229. A revisão da
CLT foi bem ampla, mas eu destaco apenas quatro pontos. Primeiro: restrições ao contrato a
prazo, porque estava havendo um certo abuso nessa modalidade de contratação, que não gera
indenização quando se extingue. Segundo: um novo capítulo sobre Segurança e Higiene do
Trabalho, que também estava a exigir uma revisão total. Terceiro: um novo título sobre as
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Convenções Coletivas de Trabalho, admitindo o acordo coletivo. Finalmente, um novo título
sobre a Inspeção do Trabalho, adaptando a nossa legislação à Convenção n° 81 da OIT, que
fora ratificada pelo Brasil. Esses para mim foram os quatro aspectos mais importantes do
Decreto-Lei 229.
— Quais foram as alterações introduzidas no novo título sobre as Convenções
Coletivas de Trabalho? Especialmente as que o senhor introduziu?
No projeto de lei que eu enviei à Comissão Permanente de Direito Social, procurei
substituir o título VI da CLT por um novo, descorporativando as convenções coletivas, que só
podiam até então ser de categoria. Admiti a convenção do sindicato com a empresa, portanto
não-corporativa, que é o chamado acordo coletivo de trabalho. Incluí também nesse projeto
uma norma estabelecendo a legitimidade da greve quando o sindicato patronal ou a empresa
se negasse a negociar. Mas essa norma foi retirada no Decreto-Lei 229. O Decreto-Lei 229
aprovou o meu projeto na íntegra, com duas modificações: a supressão desse artigo que
legitimava a greve quando os empregadores se negavam a negociar, e a inclusão do artigo
623, que tornava nula a cláusula da convenção que estipulasse reajustamento salarial
contrário à política salarial do governo.
— E quanto à segunda grande alteração da CLT em que o senhor participou?
Mais tarde, em 1974, o presidente Geisel nomeou uma comissão para atualizar a CLT
e me conferiu a presidência. Faziam parte Délio Maranhão, que foi da Fundação Getúlio
Vargas, meu companheiro de lutas acadêmicas e grande amigo, Aldílio Tostes Malta, do TST,
Carlos Chiarelli, que foi senador, ministro da Educação, Edimo Lima De Marca, que foi do
BNH, Hugo Gueiros Bernardes, catedrático de direito do trabalho em Brasília, Júlio Cesar do
Prado Leite, que foi consultor jurídico do Ministério do Trabalho e é um dos próceres do IAB,
Prates de Macedo, procurador, e Aluísio Simões Campos, delegado regional do Trabalho de
São Paulo. Creio que não esqueci ninguém. Essa comissão teve duas etapas importantes. Logo
de saída nós chegamos à conclusão de que uma nova CLT ia demorar, mas que havia alguma
coisa que precisava ser modificada imediatamente. Sugerimos então ao presidente Geisel, e
ele concordou, que enviasse ao Congresso Nacional um projeto que redigimos e que se
transformou na Lei 6.136, de 74, passando o salário-maternidade para a Previdência Social - a
maior fonte de discriminação do trabalho feminino, antes, era a obrigação do empregador
pagar diretamente o salário-maternidade. Outro problema era a discriminação dos
trabalhadores mais idosos. O aposentado, embora com muita experiência e capacidade física e
intelectual, não podia ser readmitido depois da aposentadoria porque a lei mandava, no caso
de readmissão, somar todo o tempo anterior. Então o empregador não o conservava na
empresa. Nós alteramos o artigo 453 da CU, dispondo que, no caso de empregado
espontaneamente aposentado, o tempo de serviço anterior não seria computado. Isso se
transformou na Lei 6.204. Também pinçamos alguns projetos importantes que estavam
tramitando no Congresso, que modificavam algumas normas da CU, e sugerimos que o
governo prestigiasse a sua rápida tramitação. Isso aconteceu, por exemplo, com a modificação
do artigo 469 da CLT pela Lei 6.203, de 75, que restringiu a transferência do empregado para
outro local, inclusive para outro estado; e com a Lei 6.211, de 75, que facultou ao empregado
de menos de 18 anos, estudante, marcar as suas férias no período de férias escolares, para
haver coincidência.
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Enquanto isso, nós aprontávamos o projeto global de atualização da CU. Em
novembro de 76, o entregamos aos ministros Arnaldo Prieto, do Trabalho,e Armando Falcão,
da Justiça, os quais sugeriram ao presidente Geisel que não mandasse o projeto inteiro para o
Congresso. Era um projeto com 922 artigos e vinte anexos - os anexos eram as profissões
regulamentadas -, e eles achavam que ia ser objeto de muitas emendas. Temendo mandar um
projeto daquele tamanho sem prazo, o presidente resolveu enviar por capítulos, começando
pelo de férias. Mas o Congresso entrou em recesso depois daquele problema do pacote de
abril, em 77, e voltou tudo para o Poder Executivo. O capítulo de férias acabou sendo
aprovado por decreto-lei. Em seguida foi mandado o capítulo de higiene e segurança do
trabalho, que tramitou normalmente no Congresso e, com pequeníssimas alterações, se
transformou em lei de dezembro de 77. Preparamos então o capítulo sobre o trabalho da
mulher. Aí aconteceu uma coisa muito curiosa. E que o ministro Prieto mandava divulgar os
projetos, para ver a reação da opinião pública antes de enviá-los para o Congresso. E as
associações femininas nos criticaram, porque acharam que tínhamos avançado pouco. Nós
avançamos pouco porque o Brasil estava preso a uma convenção da OIT de 1948, que só foi
revista agora, e não podíamos ir contra a convenção. Todavia, enquanto as associações
femininas nos criticavam por termos avançado pouco, os sindicatos machistas, inclusive os
sindicatos de metalúrgicos do ABC, de São Paulo, nos criticavam porque tínhamos avançado
demais e íamos gerar desemprego masculino.
— O que significava esse "avançar pouco" para as feministas?
As feministas não queriam nenhuma restrição ao trabalho da mulher, porque isso seria
fonte de desemprego, de discriminação etc. Mas a Convenção no 89 da OIT, ratificada pelo
Brasil, restringia sobretudo o trabalho noturno da mulher, e nós não podíamos fugir a ela. Até
hoje no Brasil os salários da mulher, de um modo geral, são menores que os dos homens,
embora a CLT tenha determinado a equiparação salarial, no título referente ao Contrato de
Trabalho. Pouco a pouco está havendo progressos, mas ainda assim, estatisticamente, a gente
verifica que há uma diferença, não só no Brasil, mas em várias partes do mundo, a começar
pela Inglaterra.
Mas o fato é que o ministro Prieto resolveu não mandar esse projeto e nos incumbiu
de preparar os títulos sobre a Justiça do Trabalho e seu processo. Preparamos, encaminhamos
ao ministro, que mandou ao presidente da República, mas aí o presidente resolveu esperar a
aprovação da Lei Orgânica da Magistratura para depois sintonizarmos o projeto com ela.
Acontece que a Lei Orgânica da Magistratura demorou mais do que o governo esperava.
Quando saiu, era o fim do governo Geisel, e o presidente preferiu deixar para o novo governo
decidir. Apenas determinou a publicação do anteprojeto na íntegra no Diário Oficial. O
presidente Figueiredo, que sucedeu o presidente Geisel, nomeou ministro do Trabalho o
advogado paulista - aliás ele era mineiro, mas era ligado aos paulistas Murilo Macedo, e este
resolveu criar uma comissão para preparar o Código do Trabalho, deixando de lado o que
havíamos feito. Essa comissão nunca aprontou projeto algum.
Há uma coisa que eu não disse a respeito do nosso projeto, mas que historicamente é
muito importante que fique registrado: nós tínhamos um mandato restrito quanto a
determinados aspectos. Tínhamos liberdade para atualizar o sistema de direitos individuais,
processuais, administrativos, mas na parte de organização sindical e de direito de greve o
presidente Geisel sempre nos mandava esse recado pelo ministro Prieto: "Não propor
modificações de fundo. Apenas aprimorar redação."
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 113-127.
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— Como o senhor vê a organização sindical brasileira hoje?
A meu ver, há muita coisa a fazer. Agora, não se pode pensar numa atualização da
CLT a não ser que se façam leis que complementem aquilo que decorre da Constituição. E o
principal é o seguinte: a Constituição de 88, para surpresa de todos os que acompanharam o
seu trabalho, sobretudo porque se ouvia de muitos deputados, da imprensa etc., críticas ao
sistema sindical brasileiro, manteve tudo o que foi feito no tempo de Getúlio Vargas! O
sistema sindical que foi transplantado para a CLT, oriundo do Decreto-Lei 1.402, de 1939,
tirando uma ou outra alteraçãozinha, ainda está em vigor! Esperava-se que a Constituição de
88 alterasse profundamente esse sistema, até para que o Brasil ratificasse a mais importante
das convenções da OIT, que é a de n.º 87, sobre liberdade sindical. A Constituição de 88, no
seu artigo 89, deu realmente autonomia aos sindicatos, mas a liberdade sindical, tal como
conceituada juridicamente pela Convenção 87, não foi assegurada. Por um acordo que dizem
que houve, entre uma parte do sindicalismo brasileiro e o Centrão, foram mantidos e até
ampliados todos os princípios corporativos da Constituição de 37 e da legislação subseqüente.
Isto é: unidade sindical compulsória por categoria, em todos os níveis do sistema
confederativo e hierarquizado, além da contribuição sindical compulsória. Criou-se ainda
outra contribuição, que a meu ver concedeu um poder tributário anômalo aos sindicatos. Por
que anômalo? Por que é regra de direito e tradição no mundo inteiro que só quem tem poder
de tributar é o Estado, seja a União, os estados ou os municípios.
— É a taxa confederativa?
É a chamada taxa confederativa. Que, a meu ver, e conforme pronunciamento do IAB,
Instituto de Advogados Brasileiros, que aprovou por unanimidade um parecer nesse sentido
do professor Arion Romita, não está em vigor, porque é preciso uma lei disciplinando esse
poder tributário atípico do sindicato. Na prática, porém, quase todos os sindicatos estão
instituindo essa contribuição. Como ela não sai do bolso dos empregadores, as empresas, de
um modo geral, para não terem problemas com os sindicatos, descontam do salário do
empregado e recolhem no sindicato. Mas os sindicatos que têm ajuizado ações para
recolherem essa contribuição têm perdido na Justiça, inclusive na Justiça comum, sob o
fundamento de que a taxa não está em vigor, porque antes é preciso uma lei regulamentando.
Porque sem regulamentação, esse poder tributário do sindicato fica maior do que o poder
tributário da União. Vamos admitir, só por absurdo de argumentação, que um sindicato decida
instituir uma contribuição mensal de 50% do salário. E um absurdo, mas se não há limite,
teoricamente ele pode fazer isso!
Outra coisa com que não estou de acordo é com o anteprojeto de lei sobre as relações
individuais de trabalho que foi elaborado por uma Comissão dita de Modernização do
Trabalho, designada ainda pelo presidente Fernando Collor de Mello. Esse projeto tem um
artigo 111 que é uma calamidade, é uma afronta a tudo o que se aprende em direito, porque
declara simplesmente que onde houver convenção ou acordo coletivo, eles prevalecem sobre
a lei. Isso significa acabar com o direito do trabalho! Por exemplo, se o dono do armarinho
que fica no interior de um Estado qualquer fizer um acordo coletivo com o sindicato local no
sentido de conceder cinco dias de férias aos seus trabalhadores, o acordo prevalecerá sobre a
lei, porque a Constituição não fixa o número de dias de férias! A Constituição manda apenas
que se garanta férias anuais remuneradas com um terço de gratificação. Se uma indústria fizer
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 113-127.
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um acordo dando 5% do salário mínimo para o trabalho insalubre, isso prevalecerá sobre a
legislação que dá 40%!
— O senhor acredita na possibilidade de extinção do Imposto Sindical?
É muito difícil a gente querer profetizar as linhas de ação de uma Assembléia
Constituinte ou de um Congresso Nacional, porque os nossos deputados nem sempre estão
vinculados a uma linha doutrinária. Se quisermos pesquisar qual é a linha doutrinária do
partido A, B, ou C, não conseguiremos saber. Dou um exemplo. Eu vi nascer o PTB. O PTB
nasceu no 14Q andar do Ministério do Trabalho, por orientação e comando do ministro
Marcondes Filho, que procurou mostrar a Getúlio que ele estava criando o PSD com a
coordenação do governador de Pernambuco, Agamenon Magalhães, para reunir governadores
e empresários da indústria, mas não para reunir os trabalhadores. Para que os trabalhadores
tivessem uma opção e não caminhassem para o Partido Comunista, era preciso que se criasse
o Partido Trabalhista Brasileiro. Getúlio autorizou, e o PTB foi criado no gabinete do ministro
Marcondes Filho, do qual eu era assistente. Fui convidado a ser candidato a deputado federal
na primeira chapa - em que, aliás, Getúlio teve tantos votos que elegeu todo mundo -, mas não
aceitei, porque a minha carreira sempre foi ligada à Justiça. Fui ministro do Trabalho e da
Previdência Social no governo Castelo Branco sem nunca ter pertencido a qualquer partido
político. Mas eu me referi ao PTB para dizer o seguinte: qual é a linha do PTB hoje? E um
partido de meia esquerda, como devia ser? E um partido que defende a doutrina do
trabalhismo, que foi aqui defendida por Pasqualini, Lúcio Bittencourt, Fernando Ferrari? Não.
Hoje é um partido talvez de centro direita. De maneira que é difícil responder à sua pergunta.
O que eu posso dizer é o seguinte: acho que se deve extinguir o Imposto Sindical, porque ele
só foi necessário inicialmente, quando o Brasil quase não tinha sindicatos. Naquela época era
preciso fortalecer os poucos sindicatos existentes e criar uma espécie de vínculo entre o
trabalhador e o sindicato: "Eu estou pagando! Deixa eu ver o que que eles estão fazendo!"
Mas desde algum tempo nós já temos uma organização sindical que prescinde do Imposto
Sindical. Então eu acho importante que ele acabe, como acho importante que o artigo 8o dê
liberdade de organização, isto é, não imponha a unicidade sindical compulsória por categoria.
A liberdade sindical, segundo o direito comparado e a Convenção 87 da OIT, pode
proporcionar vários tipos de sindicato: sindicato de categoria, sindicato de profissão ou oficio,
sindicato de empresa, sindicato de estabelecimento. Por exemplo, o Banco do Brasil: podia ter
um sindicato, até nacional. A Companhia Vale do Rio Doce podia ter um sindicato dos
empregados dela. A Companhia Vale do Rio Doce, da qual sou consultor jurídico-trabalhista,
negocia o acordo coletivo com 23 sindicatos, em vez de negociar com um. Temos sido felizes,
porque na história da Vale do Rio Doce, que já fez 50 anos, só tivemos um dissídio coletivo.
Só uma vez fomos à Justiça do Trabalho.
Se se fizer uma reforma constitucional nesse sentido, será preciso elaborar a legislação
conseqüente. Será preciso disciplinar certas coisas. Por exemplo: como aferir o sindicato mais
representativo para negociar? Como decidir conflitos de representação? Quando na mesma
empresa há um sindicato de categoria, um de profissão, um de empresa, qual o agente
negociador e com que limites? A liberdade sindical existe na França, nos Estados Unidos, em
muitos lugares. E note-se o seguinte: o direito comparado mostra que onde o sindicalismo é
mais forte, e há uma conscientização de que a política partidária enfraquece o sindicato,
nesses países, apesar de poder haver pluralidade sindical, há unidade sindical de fato.
É assim na Inglaterra e na Alemanha. Já em outros países, como na França, na Itália,
na Espanha, há uma tendência à politização de cada pirâmide sindical. Vejamos o exemplo da
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 113-127.
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França. Lá você tem a CGT, a Confederação Geral dos Trabalhadores, que é de índole
comunista-socialista e agremia todos os sindicatos dessa linha. Você tem a CGT Force
Ouvrière, fundada por Léon Jouhaux, que defende a independência do sindicato em relação à
política. Você tem a Confederação Francesa dos Trabalhadores Cristãos, a Confederação
Geral dos Trabalhadores Autônomos etc. Existem várias confederações. Isto quer dizer que a
pluralidade sindical de direito pode determinar uma unidade de fato ou uma divisão do
sindicalismo por tendências políticas ou filosóficas. Aí então é necessário uma lei que regule
quem vai negociar, quem vai assinar a convenção em favor de todos.
— E quanto à Justiça do Trabalho? Como o senhor a vê hoje?
A Justiça do Trabalho cresceu demais. Hoje, às 722 Juntas de Conciliação e
Julgamento de 1991, se somam mais trezentas e poucas, que foram criadas em dezembro de
1992 e ainda estão sendo instaladas. Temos, portanto, mil e poucas juntas. Essas juntas, em
1991, julgaram um milhão, quatrocentas e noventa e seis mil, oitocentas e noventa ações. Isso
é quase um absurdo! A Alemanha, que tem uma organização similar à nossa, com juízes
locais, tribunais de estado e o Tribunal Federal do Trabalho, que é o nosso TST, julga por ano
em torno de sessenta mil processos. De sessenta mil para um milhão e meio a diferença é
gritante. A Inglaterra também julga por ano em torno de sessenta mil questões de trabalho. E
são dois países altamente industrializados.
Por que julgamos tantas ações? Por dois motivos, a meu ver. Primeiro, devido à falta
de mecanismos ou procedimentos intra-empresariais para resolver as questões por acordo. Na
Alemanha é obrigatório para as empresas de grande e médio porte terem comissões paritárias
de conciliação. Elas não podem julgar, mas tentam conciliar e conciliam quase tudo. O que
sobra vai para a Justiça.
Outros países que não têm isso, como os Estados Unidos, por exemplo, têm uma
tradição, que vale tanto quanto uma lei, de que o chefe do serviço de recursos humanos de
uma empresa convoca sempre o delegado sindical para tratarem das reclamações dos
empregados. E a decisão tomada, quando não conciliam a questão, tem uma importância
fundamental, porque quando o delegado sindical não dá razão ao empregado, este fica sem
coragem de ir para a Justiça.
De maneira que a falta de comissões intra-empresariais é responsável pela hipertrofia
da Justiça do Trabalho. Mas já houve tentativas? Já. Eu sugeri na Academia Brasileira de
Direito do Trabalho, da qual fui o primeiro presidente, e hoje sou presidente honorário, que se
fizesse um projeto nesse sentido. Foi feita uma comissão, a assembléia da Academia designou
a mim, Segadas Viana e Haddock Lobo, que na ocasião era o presidente do IAB, e nós três
fizemos um projeto. A assembléia posterior o aprovou e o projeto foi mandado para o
Ministério do Trabalho e para o Congresso Nacional. Mas não teve andamento. Mais tarde, a
Justiça do Trabalho fez um congresso de corregedores de todos os órgãos do Trabalho. E os
corregedores fizeram um outro projeto, que foi aprovado por unanimidade e mandado ao
Congresso Nacional. Esse parece que está andando, mas também não saiu nada até agora.
Mas existe ainda uma segunda causa: é que no Brasil não há proteção contra a despedida
arbitrária. Então, a rotatividade da mão-de-obra é muito acelerada, é muito grande. E o
empregado despedido tem sempre alguma coisa para reclamar.
— Como ele pode entrar na Justiça gratuitamente, ele reclama tendo ou não tendo
direito, e sobrecarrega a Justiça do Trabalho.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 113-127.
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Exato. Por mais que se crie Juntas de Conciliação e Julgamento, novas turmas nos
tribunais etc., elas estarão sempre correndo atrás do número ascendente de questões.
— Em relação às causas coletivas, o senhor também tinha mencionado a necessidade
de estímulo à negociação, para que não se recorresse tanto à via judicial.
É. No Congresso de Direito Coletivo do Trabalho, de novembro de 92, em São Paulo,
eu propus uma restrição, porque na medida em que se limitar o acesso à Justiça do Trabalho,
vai-se estimular a negociação coletiva. O que eu propus foi o seguinte: só seria possível
suscitar o dissídio coletivo: a) se as duas partes estivessem de acordo; b) por iniciativa do
Ministério Público, em caso de greve em atividade essencial que estivesse prejudicando a
comunidade; c) por iniciativa de qualquer das partes, depois de decorrido um prazo X, que eu
não fixei, mas que poderia ser de dois ou três meses, de efetiva negociação coletiva. Não seria
como hoje, que antes de se extinguir a vigência da sentença coletiva anterior você já entra
com o dissídio.
— O que obteve o trabalhador rural nesses 50 anos de CLT?
A CLT, na ocasião em que foi feita, apenas lhe deu salário mínimo, carteira
profissional, férias...
— Mas nada disso foi aplicado de fato.
É. Era preciso que houvesse sindicatos, inspeção do trabalho, juntas locais, que não
existiam. Começamos com 36 juntas no Brasil todo. Hoje existem mil e poucas. Mas na época
da CLT a preocupação era mais com o trabalhador urbano, por causa da industrialização. A
preocupação com o trabalhador rural veio mais tarde, quando o Getúlio já tinha morrido, em
59, 60, mais ou menos. Acho que foi Juscelino que designou uma comissão composta de
Alzira Vargas, Nerio Batendieri, Humberto Grande e eu, para fazermos o projeto de lei
especial para o trabalho rural. Fizemos esse projeto, mas ele não chegou a ser enviado ao
Congresso. Depois Fernando Ferrari nele se inspirou, o colocou como ele queria e o
transformou no Estatuto do Trabalhador Rural, que é de 63. Posteriormente, no governo
Médici, o ministro Júlio Barata conseguiu a Lei 5.889, de 8 de julho de 1973, que revogou o
Estatuto do Trabalhador Rural e mandou aplicar, a meu ver erradamente, a CLT ao
trabalhador rural em geral, salvo algumas disposições especiais que foram consignadas. Acho
que naquele momento não havia possibilidade de se aplicar a CLT sem adaptações. Eu
preferia o Estatuto do Trabalhador Rural.
— Aprendemos muito com sua entrevista. Só para concluir, o senhor acha que a CLT
hoje ainda é positiva ou representa um problema para o desenvolvimento do país?
Eu acho que ela ainda é positiva; mas poderia ser revista para que suas normas sejam
mais gerais, propiciando maior flexibilização na sua aplicação, tendo em vista peculiaridades
regionais e profissionais, além do porte das empresas. Essas normas gerais inderrogáveis
caracterizariam o intervencionismo básico do Estado, traçando uma linha de proteção ao
trabalhador abaixo da qual não se concebe a dignidade humana. A complementação,
suplementação ou flexibilização das normas decorreriam das convenções coletivas de
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 113-127.
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trabalho - sindicato patronal com sindicato de trabalhadores - e dos acordos coletivos de
trabalho - uma ou mais empresas com os correspondentes sindicatos de empregados.